O Chefe que Queria Ser Miyagi (Mas Virou Karaokê)

06/10/2025

Uma história sobre inovação, processos e por que IA não conserta bagunça

Roberto sempre se considerou um visionário. CEO da TechFlow, uma empresa de logística com 15 anos de mercado, ele adorava assistir filmes sobre liderança transformadora. Seu favorito era "Karatê Kid" – aquela cena do Sr. Miyagi ensinando Daniel-san com "tira casaco, coloca casaco" o inspirava profundamente.

- O segredo da inovação é disciplina e repetição - dizia para sua equipe toda segunda-feira. - Somos como o Daniel-san, sempre aprendendo.

Mas Roberto tinha um problema: sua empresa estava longe de ser um dojo zen.

A TechFlow vivia um caos organizado. Planilhas duplicadas, processos não documentados, reuniões que viravam outras reuniões, e-mails perdidos no limbo corporativo. Mesmo assim, funcionava. Mal e porcamente, mas funcionava.

Tudo mudou numa manhã de março, quando Roberto acordou bombardeado por posts no LinkedIn.

"Se você não testou IA para logística, está obsoleto!"
"300 ferramentas de IA que vão revolucionar seu negócio!"
"A pessoa que sabe IA vai roubar seu emprego!"

Roberto sentiu aquele aperto no peito. O FOMO bateu forte.

- Meu Deus - murmurou, scrollando freneticamente. - Estou ficando para trás. Somos uma empresa de tecnologia que não usa IA!

Na reunião matinal, Roberto entrou com energia de filme de ação.

- Pessoal, vi o futuro ontem à noite! - anunciou, batendo a mão na mesa. - Vamos implementar inteligência artificial em TODOS os processos. Seremos o Sr. Miyagi da inovação!

Marina, gerente de operações há 8 anos na empresa, ergueu a sobrancelha:

- Roberto, mas nosso CRM ainda está...

- IMPLEMENTA IA! - Roberto a interrompeu, empolgado. - Começamos hoje. Comprei três softwares ontem de madrugada!

Semana 1: "Tira IA, Coloca IA"

Roberto instalou um sistema de IA para análise de dados. Em duas horas, estava gerando relatórios automáticos sobre tudo.

- Olha só, Marina! - mostrou orgulhoso. - A IA já analisou nossos processos!

Marina olhou o relatório: "Dados inconsistentes detectados. Múltiplas fontes conflitantes. Recomenda-se padronização prévia."

- Roberto, o sistema está dizendo que nossos dados estão bagunçados.

- Ah, deve ser bug - Roberto dispensou. - Vamos testar outra ferramenta!

Semana 1: O Efeito Karaokê

A segunda ferramenta de IA começou a automatizar e-mails de atendimento ao cliente. O resultado foi desastroso.

Clientes receberam respostas como: "Prezado [NOME_CLIENTE], seu pedido [CÓDIGO_INEXISTENTE] foi processado com sucesso no endereço [ERRO_DADOS]. Prazo de entrega: [INFORMAÇÃO_CONFLITANTE]."

Carlos, do atendimento, veio correndo:

- Chefe, os clientes estão furiosos! A IA está mandando informações erradas!

Roberto ficou confuso. Era como ver alguém cantando mal no karaokê - a voz já era ruim, mas o microfone amplificava a desafinação para toda a sala ouvir.

- Deve ser a ferramenta - concluiu. - Vamos trocar!

Semana 3: "Coloca IA, Tira IA"

A terceira ferramenta prometia otimizar a logística de entregas. Em 48 horas, o caos estava instalado.

A IA, baseada nos dados bagunçados da empresa, começou a sugerir rotas bizarras: caminhões indo de São Paulo para Santos passando por Brasília, entregas agendadas para endereços inexistentes, produtos sendo enviados para clientes errados.

- TIRA ESSA IA! - Roberto gritou. - COLOCA OUTRA!

Marina observava a cena, lembrando da metáfora do chefe sobre disciplina e repetição. Só que agora parecia mais um "tira casaco, coloca casaco" desesperado.

Semana 4: A Revelação

Foi quando Dona Conceição, a faxineira mais sábia da empresa, fez o comentário que mudou tudo.

- Seu Roberto - disse ela, organizando a mesa dele -, o senhor sabe que eu canto no coral da igreja, né?

- Sei, Conceição. Mas agora não é hora para...

- Pois é. Semana passada teve um rapaz novo lá. Voz linda, afinado, técnica perfeita. Quando ele cantou no microfone, ficou mais lindo ainda.

Roberto parou de digitar.

- Mas teve outro rapaz também - continuou Conceição. - Desafinado, sem ritmo. Quando ele pegou o microfone... nossa senhora, que sofrimento! O microfone só fez a desafinação ficar pior, sabe?

Silêncio.

- O microfone não melhora quem canta mal, Seu Roberto. Ele só amplifica o que já existe.

Roberto olhou para as três telas abertas com ferramentas de IA, os relatórios confusos, os e-mails de reclamação. Finalmente entendeu.

O Momento Miyagi

Roberto chamou Marina para uma conversa.

- Marina, preciso da sua honestia. Como estão nossos processos... de verdade?

Marina respirou fundo:

- Roberto, somos uma bagunça organizada. Nossas planilhas não conversam, nossos dados estão em 15 sistemas diferentes, nossos processos existem na cabeça das pessoas, não no papel. A IA só está mostrando o que já sabíamos: nossa operação precisa ser arrumada primeiro.

- Então... a IA não é mágica?

- IA é como um megafone, Roberto. Se você grita besteira no megafone, todo mundo vai ouvir a besteira amplificada.

Roberto ficou em silêncio, processando. Lembrou do Sr. Miyagi: antes de ensinar karatê, ele fazia Daniel-san aprender os movimentos básicos. "Primeiro aprende a andar, depois aprende a correr."

- Marina, vamos parar tudo. Todas as IAs, todos os sistemas. Vamos começar do zero.

- Como assim?

- Primeiro vamos organizar a casa. Vamos mapear nossos processos, limpar nossos dados, padronizar nossa operação. Quando estivermos cantando afinado, aí sim colocamos o microfone.

Três Meses Depois

A TechFlow havia passado por uma transformação silenciosa. Não havia mais planilhas duplicadas. Os processos estavam documentados. Os dados, limpadeza e organizados. A comunicação fluía sem ruídos.

Só então Roberto implementou IA novamente. Uma ferramenta por vez, testando, medindo, ajustando.

O resultado foi impressionante. A IA, agora alimentada com dados limpos e processos organizados, realmente otimizou as operações. Rotas mais eficientes, atendimento personalizado, previsões precisas.

Na reunião de resultados, Marina comentou:

- Sabe, Roberto, você conseguiu ser o Miyagi afinal.

- Como assim?

- "Tira casaco, coloca casaco" não era sobre ficar tirando e colocando sem parar. Era sobre repetir o movimento certo até ele ficar perfeito. Você aprendeu que inovação não é sobre abraçar toda tecnologia nova. É sobre fazer o básico muito bem feito primeiro.

Roberto sorriu:

- E descobri que IA não conserta bagunça. Ela amplifica o que você já tem.

A Lição do Karaokê

Seis meses depois, Roberto palestrava em um evento de inovação empresarial. Sua talk favorita tinha o título: "Por que Parei de Ser um Terrorista Apocalíptico da IA."

- Pessoal, quantos aqui já viram alguém desafinado cantando no karaokê? - a plateia riu. - Pois é. O microfone não melhora quem canta mal. Só amplifica a desafinação.

- IA é igual. Se sua operação é uma bagunça, IA vai amplificar a bagunça. Se seus processos são confusos, IA vai potencializar a confusão. Se seus dados são inconsistentes, IA vai gerar mais inconsistência.

- A verdadeira inovação não é sobre tecnologia. É sobre ter coragem de parar, respirar e organizar a casa primeiro. É sobre fazer o básico excepcionalmente bem. É sobre sair da zona de conforto não para abraçar o hype, mas para resolver os gargalos reais do negócio.

Roberto pausou, olhando para a plateia:

- FOMO não é estratégia. Panic buying de ferramenta não é inovação. E terrorismo apocalíptico não é liderança.

- Como dizia o Sr. Miyagi: primeiro aprende andar, depois aprende correr. Primeiro organiza os processos, depois amplifica com IA.

E a TechFlow vivia estrategicamente para sempre.


Moral da história: Inovação verdadeira começa com processos sólidos. 

IA não conserta bagunça - ela amplifica o que já existe. Se a operação é ruim, IA vai potencializar a operação, ou seja, vai ficar pior ainda.

Feito é melhor que perfeito, mas também não pode ser mal feito.

Os Conceitos por Trás da História

A história do Roberto não é só engraçada — ela é um retrato do que vejo todos os dias: empresas correndo para implementar a última moda, sem perceber que inovação não é hype, é cultura e processo.

O que mais existe hoje são os "terroristas apocalípticos" da inovação — gente que vende medo:

"Se você não usa X, sua empresa está atrasada."
Isso é FOMO (Fear of Missing Out), não é estratégia.

Por que IA não conserta operações ruins

  1. Garbage In, Garbage Out – IA só devolve o que você coloca nela. Se entra dado ruim, sai resposta ruim. A culpa não é da máquina, é do humano que não sabe usar (e isso me inclui quando comecei a testar).

  2. Amplificação de problemas – IA é como karaokê: se a pessoa canta mal, o microfone só deixa mais alto. Se a operação é ruim, a IA vai potencializar o ruim.

  3. Ausência de contexto – Ferramenta não entende nuance de processo mal documentado. A máquina é rápida, mas não é mágica.

O modelo certo de inovação empresarial

  1. Diagnóstico honesto – Não invente problemas. Mapeie os gargalos reais.

  2. Organização de base – Padronize processos, limpe dados, documente fluxos.

  3. Implementação gradual – Uma ferramenta por vez, com testes, ajustes e medições.

  4. Otimização contínua – A tecnologia vem para acelerar o que já funciona.

IA é o microfone: ela não afina a voz de ninguém. Ela só amplifica. Se a empresa canta mal (processos ruins), vai ficar insuportável. Se canta bem (processos sólidos), vai soar incrível.

Sinais de que sua empresa está pronta para IA

  • Processos documentados e padronizados
  • Dados organizados e confiáveis
  • Equipe treinada nos fundamentos
  • Métricas claras de sucesso estabelecidas

No fim, a verdadeira inovação não é usar IA ou qualquer outra moda. É ter a disciplina de fazer o básico excepcionalmente bem. E aí sim, quando você coloca IA em cima disso, o resultado é poderoso.